“Rorschach” e o abismo que continua nos olhando de volta
A primeira história em quadrinhos que eu li na vida adulta foi Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons (de quem mais seria? rs). Por que alguém começaria a ler quadrinhos justamente por Watchmen? Bom, minha razão foi simples: vi um vídeo-ensaio no canal “Ora Thiago” sobre a série Watchmen da HBO, interessei-me muito pela série e, na vontade de apreciá-la da melhor forma possível, resolvi adquirir/ler a HQ primeiro. Dali foi ladeira abaixo e/ou montanha acima no mundo dos quadrinhos.
Mas por que essa introdução? Bom, pra contar o porquê de minha naturalidade ao consumir o universo expandido/continuações da série seminal do Mago de Northampton. Adorei a série da HBO e recebi com muito entusiasmo e ansiedade a notícia de que “Rorschach”, nas mãos dos famosos Tom King e Jorge Fornés, começaria a ser publicada. Com mais ansiedade ainda, esperei o lançamento dos 2 volumes pela Panini, reunindo as 12 edições, para começar a ler, o que aconteceu na sexta-feira da semana passada, dia 22.
Que leitura de tirar o fôlego! Ao passo que Watchmen foi minha introdução ao mundo dos quadrinhos e, óbvio, ao texto do Alan Moore (meu escritor de quadrinhos favorito até hoje), Roxaxa foi minha primeira leitura do “Reizinho”. Não me decepcionei nem por um segundo e só não terminei o título mais rápido por causa das obrigações da vida e do trabalho, porque cada quadro e cada balão me foram especialmente interessantes, importantes e apreciados.
King escreveu uma história, assim me pareceu, sem qualquer intenção de rivalizar com o Autor Original. Não vi aqui nenhuma sombra de arrogância como alguém que queria dizer “ei, velho britânico, veja como eu faço melhor que você, veja como sua obra ficou datada, veja como eu posso melhorá-la pra você”. Ao contrário, a leitura me sugere que ele é um grande fã que teve nas mãos a oportunidade de poder trabalhar com a imaginação dele sobre como seria aquele universo 35 anos depois de uma lula psiônica gigante matar 3 milhões de pessoas em NYC. Mais recortado do que isso, ele brinca de imaginar como em um “What If?” da Marvel o que teria acontecido aos Estados Unidos da América na esteira daqueles eventos imaginados por Moore/Gibbons.
Que o homi é ex-agente da CIA, eu já sabia, mas que essa experiência pudesse ser tão bem aproveitada na escrita de uma história noir, investigativa, paranoica e conspiratória, eu não imaginava! Reconheço que a “falta de ação”, seja lá o que isso for, pode ser entediante para alguns, mas “Rorschach” se constrói como um thriller do começo ao fim enquanto o autor te convida a participar da investigação passo a passo e não te entrega tudo de mão beijada, mas pelo contrário, confia que você vai entender tudo à medida que as coisas vão sendo postas à mesa. Dito isso, o mais importante aqui são os afetos: há uma tensão sendo construída página a página, lentamente, tal qual o relógio do juízo final e a expectativa de uma guerra nuclear em Watchmen, e mesmo no capítulo 11 você (ou ao menos eu) não acredita que sabe como será o desfecho das coisas. E se conseguir adivinhar também, qual o problema? A jornada é tão importante e interessante, a dissecação dos personagens (literal e figuradamente rs), a apresentação de outros, tudo torna cada passo tão… excitante! Não há nada anticlimático aqui, embora seja bastante melancólico, angustiante e quase desesperador pela semelhança do texto com nossos temas.
Por falar nisso, há um tom de catarse nesta história também. Sei lá, eu achei que Tom King estivesse falando de figuras da extrema-direita exatamente de nosso tempo, tal qual Damon Lindelof fez em sua excelente série para a HBO com as pautas sociopolíticas e culturais. Há algumas homenagens-críticas aqui, um meta-comentário sobre a indústria dos quadrinhos, sobre a cultura formada e influenciada por eles, tal qual na série original.
E por que uma série televisiva de 2019 e uma série em quadrinhos de 2020 tratariam de um mesmo personagem já morto, o Rorschach? Será só “caça níquel”? Só vontade de fazer dinheiro da Warner-DC? Acho que sim, como toda empresa deseja, mas mais do que isso. Rorschach não é Walter Kovacs, Rorschach é uma ideia, um fantasma. Quando você olha para uma prancha de Rorschach, você vê aquilo que você é, você projeta coisas de dentro de você. Quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta pra você. Daí, cada um se apropria da máscara/rosto de Rorschach conforme a sua própria loucura. Não tô “romantizando” o personagem, desde Watchmen a crítica tá muito bem estabelecida, na minha humilde leitura: Rorschach não é um herói, Rorschach é um sintoma de traumas biográficos, políticos e sociais. E como nossos tempos são parecido com a década de 1980 e com a Guerra Fria, não? Não me admira que Watchmen e seu universo expandido sejam tão necessários, pedidos e apreciados pelo público até hoje.